sexta-feira, 26 de junho de 2009

sempre o abismo

É incrível como ainda me alimentas. Como ainda despertas em mim a imaginação que teima adormecer. Incrível. Tu és, de facto, o meu abismo. Chego a pensar que nunca subi a falésia, que tudo não passou de uma ilusão e que eu ainda estou lá em baixo. A ti, já não te vejo... a tua fuga foi rápida e silenciosa. Às vezes penso que foi minha a opção de ter ficado no abismo...habituei-me à ilusão da tua presença e é essa ilusão que me alimenta.


Aurora

foto: Cristina Henriques

Diz-me o teu nome, pergunta-me o meu

Não sei qual é o teu nome, não houve tempo para trocar nomes. Na verdade, não nos interessavam os nomes; nunca pretendemos conhecer-nos. Desejávamos, apenas, passar algumas horas juntos: e fazer sexo; saciar o desejo, alimentar a fantasia, disfarçar a rotina; e esquecer. Partilhar os corpos, e não os nomes ou os sentimentos ou as sensações ou os medos; para isso temos os namorados. Fomos apenas dois estranhos que coincidiram na intenção momentânea de retirar prazer do outro; nunca nos ocorreu proporcionar prazer: isso implicaria um a dádiva; e dar é uma forma de amar. Não, nada disso: pretendíamos apenas obter prazer, usando o outro.
Foi para isso que te trouxe aqui: para te foder.


Gastar palavras
Paulo Kellerman

Blue Nude

Picasso

Trilhos

Os trilhos mais sinuosos e difíceis são, muitas vezes, os que maior magia nos trazem às nossas vidas.
Violeta

foto: Cristina Henriques

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O PESO E A LEVEZA

O eterno retorno é a ideia misteriosa de Nietzche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filosóficos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir ainda uma e outra vez e que essa repetição se há-de repetir outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito de sensato?
O mito do eterno retorno diz-nos, pela negativa, que esta vida, que há-de desaparecer de uma vez por todas para nunca mais voltar, é semelhante a uma sombra, é desprovida de peso, que, de hoje em diante e para todo o sempre, se encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor não tem qualquer sentido.
(…)
Se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um número infinito de vezes, ficamos pregados à eternidade como Jesus Cristo à cruz. Que ideia atroz! No mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade. Era o que fazia Nietzche dizer que a ideia do eterno retorno é o fardo mais pesado (…).
Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se de toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?
O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é.
Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes.
Que escolher, então? O peso ou a leveza?


In: A Insustentável Leveza do Ser
Milan Kundera

BAD NEWS

Não me lembro muito bem do que estava lá escrito, não me pareceu relevante. Bastou-me olhar e ler “más notícias” escrito numa língua anglo saxónica. Vertiginosamente pensei em no surprises, da qual curiosamente tínhamos falado no dia anterior. Para mim não existem surpresas, no entanto não tinha um plano B. Eu tenho sempre um plano B, por que raio não tinha um plano B? E que faço eu aos morangos que apanhei no quintal? Respira. Pensa: nada de surpresas. Respira novamente. Insisto nos Radiohead e nas palavras de Yorke: Um emprego que te mata; feridas que não vão cicatrizar; Um aperto de mão de monóxido de carbono; Vou levar uma vida tranquila; Sem alarmes e sem surpresas; Silêncio; Este é o meu último ataque, a minha última dor de barriga; Sem alarmes e sem surpresas; Sem alarmes e sem surpresas, por favor (deixa-me sair daqui); assim como uma linda casa; assim como um lindo jardim; Sem alarmes e sem surpresas; Sem alarmes e sem surpresas, por favor (deixa-me sair daqui). Entendo. É magnífica a melodia, mas… deixa-me sair.

Aurora

foto: Cristina Henriques

terça-feira, 2 de junho de 2009

Morreste outra vez

Finalmente, tiveste o teu ataque cardíaco. E eis-me aqui, neste quarto escuro e silencioso: sozinha.
Sei que gostarias de ter feito amor comigo, de te aliviar em mim; mas venceu-te a preguiça ou o cansaço ou o tédio; deixaste-te adormecer, enquanto eu ia adiando (…). Adiando, que é a minha forma de viver.
Apago a luz da casa de banho, fecho a porta para que não me persiga o cheiro das tuas botas, das tuas peúgas, dos teus pés, da tua carne. E vejo-te assim: tão estático e imóvel e hirto e imperturbável que só podes estar morto. Aproximo-me devagar, não sou capaz de te tocar. Não quero tocar-te. Sento-me na ponta da nossa cama, perto de ti; se quisesses, se pudesses, esticarias a mão, tocar-me-ias na perna, tentarias excitar-me, (…); mas não te moves. E eu concentro-me no esforço de não te olhar, de te esquecer. Tento distrair-me.


Gastar palavras
Paulo Kellerman

foto por: Cristina Henriques

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Lobos

O “Capuchinho Vermelho” é uma das histórias do imaginário infantil que a mim nunca me fascinou. Não entendia aquele medir de forças entre a pequena miúda e o terrível lobo. Sentia sempre um certo desequilíbrio, uma “assimetria de forças” (se é que isso existe…)
Mas quem é afinal esta gaiata que teimosamente desobedece a todas as advertências e entra pela perigosa floresta dentro?
Foi preciso chegar à idade adulta, e uma acidental visita à Biblioteca, para entender o verdadeiro sentido da história. Agora já percebi tudo. Repito, tudo. Basta ler este pequeno excerto que aqui deixo transcrito.

Aurora

Disse o lobo enquanto se vestia
Com as roupas que por ali havia.
Saia de seda, botas de verniz,
Chapéu de veludo foi o que quis.
Escovou o pelo, as garras pintou,
Bem disfarçado assim se sentou.
Um pouco depois, em passo apressado,
A moça chegou, toda de encarnado.

“Ó minha avozinha, quero saber,
As tuas orelhas estão a crescer?”
“Sim, minha neta, para melhor te ouvir.”
“Que grandes olhos tens, querida avó”,
Disse a menina cheia de dó.
“São para melhor te ver”, disse o lobo
E pôs-se a pensar: “ Não sou nenhum bobo,
Esta bela menina vou papar,
Que bom petisco para o meu jantar.
Vai saber-me que nem um pão-de-ló,
Não é velha nem dura como a avó.”
“Mas avozinha”, disse a menina,
Tens um casaco de pele tão fina.”
“Não”, disse o lobo, “Deves perguntar
por que são meus dentes de espantar.
Bem, digas tu o que disseres
Como-te sem prato nem talheres.”
A menina sorriu. Da camisola
Sacou de imediato uma pistola
E com uma certeira pontaria
Pum, pum, pum, aquele lobo morria.

Passaram os dias, passou um mês,
Vi a menina no bosque outra vez,
Mas sem o capuz, sem capa encarnada,
Toda diferente, toda mudada.
Sorrindo me explicou: Daquele bobo
Fiz este casaco de pele de lobo”.



(A menina do Capuchinho Vermelho e o lobo)