"Foi naquele dia, na Primavera de 1965, que morri. Tanto fazia que naquele dia me tivesse atirado para debaixo do comboio em Temple Meads como não. Por vezes sinto-me culpado por todo o espaço que ocupei neste mundo e toda a comida que ilegitimamente comi. Há vinte e três anos que tudo isso se anda a desperdiçar em mim. De certeza que não estão interessados nesta história do desgraçadinho cheia de autocompaixao. A partir de agora vou sair de cena. Vou servir apenas de confessionário e permanecerei escondido, anónimo e indulgente. Durante todos estes anos, sempre que telefonava a Evelyn, ela ficava a falar durante horas a fio, contando-me todos os detalhes da sua vida e todos os remorsos que tinha na consciência, mantendo-me petrificado do outro lado da linha. Era masturbação e a autoflagelação, bálsamo e castigo. Era como se fosso um aparelho de reanimação, que mantinha em mim uma chama de vida ténue, muito ténue. E, ao mesmo tempo, reduzia esse sopro de vida a uma insignificância tão infinitesimal que eu continuava tecnicamente morto. Mas, mesmo assim, continuo a ser o maior arquivo que existe sobre a vida de Evelyn Cotton. Se vivêssemos numa era cientificamente mais avançada, a Universidade do Texas compraria o meu cérebro e conservá-lo-ia na biblioteca, ao lado dos manuscritos e das cartas dela. Podia metê-lo numa caixa bonita e pôr à frente um retrato meu de quando tinha 21 anos. Seria mais atraente do que este cangalho de 44. Tenho as costas cheias de pêlos e os dedos ficaram amarelos. Já chega de conversa sobre este cadáver em decomposição, dentro do qual estou metido."
Frank Ronan
“Os homens que amaram Evelyn Cotton”
Frank Ronan
“Os homens que amaram Evelyn Cotton”
"Jardim"
Miró
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