"Nas televisões segue-se o caso da rapariga inglesa de catorze anos que desapareceu com um americano de trinta e sete. Correspondiam-se por mensagens electrónicas, sem nunca se terem visto ou falado. Marcaram encontro num aeroporto de Paris e depois desapareceram. Talvez para a Irlanda. Talvez para Lisboa. Mais provavelmente para aqui, para perto, muito perto de mim. As polícias de vários países procuram uma qualquer pista, as fotografias dos dois estampadas em todos os diários. Correspondiam-se há meses. Faziam planos para o futuro, coisas simples como casar e ter filhos. Ignoravam que já não é possível casar nem ter filhos. Ou então sabiam-no e revoltaram-se. Talvez sofressem ambos da solidão que não passa, a doença incurável. Por isso aquelas desesperadas cartas electrónicas. E depois o encontro, o rapto, perseguição por todas as policias europeias. Se os compreendo? Se se sabe o que é o amor? Apaixonaram-se um pelo outro, mentindo-se a si próprios e ao outro o necessário para não desesperarem logo face às paisagens em ruínas, às famílias destroçadas onde impera a televisão a todas as horas. Eles acreditaram no amor, eram os últimos. Eles acreditaram na poesia, eram os últimos. A polícia persegue-os seguindo todas as pistas. Com toda a razão. É demasiado perigoso uma rapariga de catorze anos que se apaixona por um soldado de trinta e sete. Qual deles será mais perigoso? Aposto que seja ela. Foi ela que se apaixonou antes de mais nada, não o contrário. Uma rapariga de catorze anos e prodigiosamente inteligente, vê tudo, sente tudo, quer ainda salvar-se da catástrofe que vê avançar a toda a hora, escapar do deserto, fugir da miséria que se acumula em todos o noticiários. Ele será condenado por rapto. Ela voltara para casa dos pais. Disso há que ter a certeza. Ele é responsável, um soldado, um homem feito de trinta e sete anos de violência. As televisões não falam de outra coisa, transformam o amor em violação. Começou a caça ao homem. A rapariga é uma presa indefesa nas garras da inconsciência.
Entretanto o homem e a rapariga amam-se em desespero num quarto fechado, num qualquer hotel barato. Têm medo de sair à rua, do olhar dos outros. Sabem que estão a ser perseguidos, que já foram condenados antes de poderem dizer o que quer que fosse, se para tal encontrassem palavras. Transportam consigo o segredo da poesia. São demasiado vulneráveis. Um olhar basta para os destruir. O homem e a rapariga continuam sentados face a face, amando-se loucamente, sem se tocarem. Acreditam no amor, na frágil flor azul. Estão enlouquecidos. Mesmo antes de se terem encontrado, alma diante de alma, nas redes electrónicas em que o amor atinge a estonteante velocidade da luz. Estão loucos por amor sentados nas camas estreitas, separadas por um pequeno intervalo, no quarto fechado do hotel barato. Não comem nada, bebem um pouco de água. Vão ficar assim imóveis até a polícia os encontrar, os cães à frente. Os cães reconhecem o cheiro do sangue do amor, da poesia nas almas. Os cães chegarão primeiro e uivarão face ao amor e à poesia como um derradeiro louvor, e depois começarão a mordê-los com raiva e fúria, a despedaçá-los até que não restem senão nervos e ossos e vísceras.
O homem e a rapariga de catorze anos estão condenados a desaparecer. São um escândalo insuportável. As famílias morrem de vergonha. Esperam ansiosamente que o par seja encontrado, amordaçado e por fim eliminado. Como a poesia. A poesia tornou-se insuportável. A poesia só sobrevive na loucura de duas pessoas que decidem amar-se, condenando-se à exaustão.
O soldado e a rapariga permanecem sentados na cama baixa olhando-se sem se tocarem. Se se tocassem o amor morreria no mesmo instante, ele sabem disso, sobretudo ela que é mais velha do que ele, muito mais consciente do que ele, embora pareça o contrário. Ela é uma rapariga decidida a levar até ao fim a poesia, um humano tão perigoso que deve ser apanhado logo que possível. Não é que as famílias tenham culpa, já que ninguém tem culpa e as famílias não têm culpa dos indivíduos que formam. Quando a rapariga for encontrada e apanhada pela polícia será imediatamente levada para casa dos pais onde a espera uma lista completa de medicamentos para tomar. Quanto a ele, será interrogado por agentes desejosos de pormenores macabros, licenciosos, no melhor caso pornográficos, e as televisões exultarão, mais uma vez, sobre o cadáver da poesia.”
In "Quase gosto da vida que tenho"
Pedro Paixão
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